sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Shakespeariano

Lia concentradamente o livro que Julieta havia lhe emprestado, na esperança de ter mais alguns pretextos para conversar com ela mais tarde. Sabia que era de sua natureza desprezar quaisquer tipos de livro ou assuntos demasiadamente intelectuais, mas alimentava-se do livro que estivera outrora nas mãos de sua amada, como se aquela fosse a última Bíblia num mundo de desgraças.
Até que encontrou um pedaço de uma folha de caderno cuidadosamente colocado entre duas paginas do livro, e logo percebeu ser a letra de Julieta.

Romeo, estimado amigo,
Se encontrou este papel agora é porque realmente tem lido o livro que eu havia lhe emprestado, o que me deixa de fato feliz.
Venho através desta carta dizer-lhe coisas que eu não poderia de outra forma.. e tu sabes bem o porquê.
Confesso que já não é segredo para mim o que sinto por ti, pois um sentimento assim tão forte não pode ser ignorado.
Também devo contar-lhe que não consigo passar um segundo sequer sem ter tua imagem refletida em minha memória, e isso me assombra durante a noite, quando te encontro em todos os meus sonhos.
Romeo, nunca houvestes percebido que tremo interna e externamente quando se aproxima de mim? E que seus lábios são o ponto do qual meus olhos penosamente desviam?
Pensas que é fácil viver com a dúvida de um destino doce, não sabendo ao certo se entregarei-me aos teus braços?
Oh, como é triste não poder emanar todo o fluido que já está transbordando de meu coração, até que ele te afogue de paixão.
Eu simplesmente não devo...
Meu querido, me diga o que devo fazer agora, pois creio que por mim tu sentes o mesmo, por mais que o destino maldito tenha nos colocado afastados...
Já não suporto sofrer”.


Rapidamente Romeo se inclinou sobre sua mochila alcançando o caderno, rasgou um pedaço da ultima folha e escreveu com a letra desajeitada por estar tremendo muito:

Fugiremos, amada minha.


terça-feira, 7 de setembro de 2010

Ambulância

Segurava firmemente sua mão enquanto olhava fixamente em seus olhos, desejando que essa não fosse a ultima vez que os veria abertos, olhando de volta. Respirava junto a ela, compassadamente, movendo levemente o peito.
Sua face exibia um semblante triste, porém confortante.
Não me segurei, cheguei mais perto para saber o que ali estava acontecendo.

Vi-la aproximar-se ainda mais e soprar o rosto da mulher estirada no chão, como se o sopro fosse aliviar seu pesar. A mulher tentou sorrir em agradecimento, mas tudo o que conseguiu fazer foi entortar penosamente seus lábios, fazendo uma careta quase que monstruosa. Ela sentia dor.
Ainda segurando sua mão, com os olhos brilhando, a menina sussurrou “Você é tudo para mim, mãe”.
Novamente, a mãe não conseguiu responder verbalmente, apenas retribuiu o olhar da filha, carregado de sentimento, com certo ar de ‘adeus’.

Examinando seu corpo deitado percebi que uma pequena (porém considerável) massa de sangue jorrava de um ponto de sua barriga, o qual ela tentava com grande esforço apalpar, mas a dor parecia maior.
Deve ter uma bala ali- eu pensei. – Como será que ela foi acertada? – Mas meus pensamentos foram interrompidos por um gesto da filha, que inclinou novamente seu corpo sobre o da mãe, dessa vez para beijar-lhe a testa.

-Mãe, o nome daquela musica que você me perguntou outro dia é “a heart to hold you”, desculpa por não ter me lembrado na hora.
Tudo que a mãe conseguiu pedir foi “cante”. E então, puxando mais um porção de ar, a filha cantou um breve trecho de uma triste canção, desafinada pela dor.
Sorrindo, a mulher fechou os olhos e deixou a cabeça pender para a esquerda.
Ela se foi.
Nesse momento a filha desafinou ainda mais a canção, que deu lugar a um choro abatido e introspectivo.

A ambulância chega. Entram mãe e filha.
Vejo a ambulância se distanciar.