segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Necrofeeling

Parte um
“Te pego aí às 9h?” Foi a última coisa que ouvi dos lábios de Bruno pelo telefone naquela tarde nublada e fria no dia em que pretendíamos sair a noite para jantar.
“8h.” Corrigi. “Sinto muita fome à noite, não gosto de esperar.” Eu disse. E então ele desligou.
Encaixei o telefone na base e fui ao banheiro tomar banho para me arrumar.
“Merda!”. Raspei a lâmina na posição contrária à indicada na embalagem e acabei cortando minha virilha. A água quente que fluía do chuveiro logo lavou o sangue, mas deixou a ardência que me fez lacrimejar.
“Maldita cicatriz.” Justo no dia em que vou ver Bruno.

Andei até meu quarto e despi a toalha. Olhei-me no espelho. “Magra demais. Pálida demais. Pequena demais.” Discorri sozinha. Eu sabia que era tudo isso que alguém pensava quando me via sem roupa. Sorte a minha, foram poucas as pessoas que tiveram esse (des?)prazer. Olhei novamente para o espelho e não pude deixar de notar “Pareço um cadáver.” Até que não era uma má imagem.

Olhei impacientemente para o relógio e a angulação dos ponteiros marcava 9h10min. Era verão e o sol demorava muito para se pôr aqueles dias, e eu sabia que Bruno detestava a luz do sol.
Um carro preto avançou vagarosamente em direção a mim e por uma fração de segundo eu me perguntei se ele não iria parar, e dei um leve pulo para trás, sentindo-me mais segura na calçada. O carro parou. Vi que
Bruno sorria por detrás do para-brisa. Entrei no carro.
“Eu tinha dito 8h”, bradei com a mão entre os nossos lábios para impedir o beijo que ele ia me dar.
Com uma sobrancelha erguida, ele respondeu “Por quê nos vermos tão cedo se temos toda a noite só para nós dois?” e sorriu “Por quê olhar seus cabelos sendo iluminados pela luz do sol se posso ver teu peito nu sendo banhado pela claridade da lua?”. E piscou com um olho só. Sorri e fiz o mesmo. Ele sempre vencia qualquer argumento meu. Saímos.

No restaurante, eu comi um saboroso pedaço de carne enquanto Bruno me fitava com olhar de cão caçador por detrás de suas lentes retangulares, e vez por outra iniciava alguma conversa sobre seu novo projeto no escritório. Ele não comeu naquela noite, apenas bebeu o vinho que jazia em uma grande taça de cristal à sua frente. Distraído olhando para mim enquanto levava a taça à boca, algumas gotas da bebida escorreram pelo seu queixo e pingaram na sua camiseta de linho branco. A mim pareceu que seu queixo e roupa estavam manchados de sangue, e por um momento ele sorriu. Eu sabia que ele tinha feito a mesma associação.

“Então, pronta?” Ele me perguntou assim que eu coloquei o último pedaço do bife na boca. Balancei positivamente a cabeça enquanto mastigava. Essa noite ele me levaria para ver as estrelas. Essa noite ele me levaria para as estrelas. Essa noite ele. Essa noite.

Enquanto ele nos dirigia pela estrada, pude ouvir uma melodia agradável saindo do aparelho de som do seu carro e pude distinguir uma voz que na canção dizia “I can't seem to find my way upon this lonely road...”
Tombei minha cabeça tonta pelo vinho para o lado enquanto ia pensando o quão breve e intensa havia sido minha experiência com o homem que agora sentava ao meu lado, me levando para as estrelas. Conhecíamo-nos a menos de dois meses, e mesmo assim, ele era a minha melhor companhia. Eu sentia que ele pensava o mesmo. Havia algo que nós dois entendíamos.
Então chegamos.

Estabelecendo contato visual comigo, ele tirou do bolso um pequeno controle e apertou um botão. Logo os vidros das janelas e o teto do carro se abriram. Meu sorriso abriu. Minhas pernas abriram.
Ele apertou outro botão e os bancos do carro começaram a se inclinar para trás. Eu nem sabia que aquilo era possível. Ficaram assim como que duas camas. Sobre nossas cabeças, um belo céu estrelado como um quadro pendurado na parede. Ele se aproximou por cima de mim enquanto eu observava sua silhueta iluminada pela luz das estrelas. Seus lábios levemente tocaram meu pescoço. Minha mão levemente tocou sua calça.

Bruno manteve seus lábios sobre meu pescoço por alguns minutos. Primeiramente, pensei que ele havia gostado do cheiro do meu perfume, mas passado um tempo eu percebi que ele estava, na verdade, medindo a minha pulsação. O sangue que corria por sob minha pele o extasiava de alguma maneira, e o êxtase dele, era o meu.
Por falar em cheiro, fui sentindo que estava ficando cada vez mais intenso um cheiro azedo que pairava no ar desde que eu tinha entrado no carro pela primeira vez naquela noite. Era tão intenso e fétido que mal podia prestar atenção em suas carícias.
"Bruno, que cheiro é esse?" Indaguei. Ele levantou a cabeça e me lançou um olhar de censura. "Não sinto cheiro algum além do seu perfume." respondeu e voltou novamente ao que estava fazendo.
Aquele cheiro podre estava me deixando intrigada. Eu nunca tinha sentido nada parecido. Sabia que exalava do porta-malas, então sem que ele percebesse a minha intenção, insisti para que fôssemos para o banco de trás. "Para ficarmos mais confortáveis", lancei.
Acomodados no banco traseiro do carro, Bruno segurou meu pé direito e começou a beijá-lo. Sem tirar os lábios de minha pele, ele foi subindo a cabeça beijando meu tornozelo, panturrilha, joelho, até chegar em minhas coxas.
Ele mordeu. Eu gemi. E o cheiro permanecia.
Beijando seu ombro, fiz com que ele se sentasse no banco e sentei em cima dele, de frente para ele. O compartimento do porta-malas estava destampado. E foi então que os meus olhos viram.
Não, não podia ser de verdade...


Parte dois
Ela estava sentada no meu colo quando eu senti que todos os músculos de seu corpo haviam retesado.
E não foi que a filha da puta me trouxe para o banco de trás pra poder descobrir a fonte do odor? Será que ela viu?
Instintivamente procurei beijar-lhe os lábios para cobrir com meu rosto seu campo de visão, mas quando me aproximei de sua face, percebi que ela estava com os olhos arregalados e as bochechas vermelhas denunciavam o sangue que por ali corria.
Seus gemidos e suspiros haviam cessado. Ela estava muda. Ela estava petrificada. Havia visto o meu segredo.
Não, não podia ser verdade...
 

Parte três
“Então é isso. Cadáveres. É isso,
Bruno.” sussurrei, e só depois que as palavras foram ditas eu pude perceber o quanto gaguejei ao falar. Minha voz falhou. Minha respiração falhou. Essa noite não falhou.
Encarei os olhos dele e percebi que ele estava atônito. Eu estava atônita. Mas ele não me conhecia.

Rapidamente levou a mão a minha boca esperando abafar os gritos que ele esperava que eu desse, ou esperando não ouvir meu choro de desespero. Afinal, eu estava no meio de lugar nenhum, na companhia de um homem que eu pouco conhecia e dois cadáveres em avançado estado de decomposição. Bruno continuou tampando minha boca, dessa vez ainda com mais força.
Mas ele não me conhecia.

Como a testa e os olhos eram as únicas partes de meu rosto que não estavam escondidas pela palma da mão dele, mostrei com o olhar que eu estava sorrindo.
Ele ficou surpreso. 
Ele não me conhecia.
Percebi que ele tentou balbuciar alguma coisa, mas palavra alguma saiu de seu ruído. Então repousei meu dedo indicador sobre seus lábios e apenas balancei a cabeça negativamente. "Não precisa se explicar", eu disse.
E sorri. Ele sorriu.
Voltamos a nos beijar.